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Cadastre-se como clienteProfessora universitária há mais de três décadas. Mestre em Filosofia. Mestre em Direito. Doutora em Direito. Pesquisadora-Chefe do Instituto Nacional de Pesquisas Jurídicas.
Presidente da ABRADE-RJ - Associação Brasileira de Direito Educacional. Consultora do IPAE - Instituto de Pesquisas e Administração Escolar.
Autora de 29 obras jurídicas e articulista dos sites JURID, Lex-Magister, Portal Investidura, COAD, Revista JURES, entre outras renomadas publicações na área juridica.
Resumo: Hamlet é, sem dúvida, o personagem mais famoso de Shakespeare, a reflexão se sobrepõe à ação e a paralisa a literatura mundial. Começa a peça com a descoberta do assassino e, finda após a vingança de Hamlet. Hamlet incorpora o drama da consciência. Vingar ou não o pai é o principal dilema do príncipe. Num mundo em plena transição, transformado pelo Renascimento, pela descoberta da América, e tantas outras chaves duais que compõe o poder e a paixão.
Palavras-Chave: Regicídio. Homicídio. Literatura Inglesa. Shakespeare. Hamlet. Direito Penal.
Abstract: Hamlet is undoubtedly Shakespeare's most famous character, reflection takes precedence over action and paralyzes world literature. The play begins with the discovery of the murderer and ends after Hamlet's revenge. Hamlet embodies the drama of consciousness. Whether or not to avenge the father is the prince's main dilemma. In a world in full transition, transformed by the Renaissance, the discovery of America, and so many other dual keys that make up power and passion.
Keywords: Regicide. Murder. English literature. Shakespeare. Hamlet. Criminal Law.
Em coautoria com Dr. Ramiro Luiz Pereira da Cruz.
O quinto ato que encerra a mais longa peça escrita por William Shakespeare. Enfim, Hamlet sobreviveu aos macabros planos do Rei Cláudio (seu tio) e, finalmente, retornou para Elsinore. Sem saber sobre a morte de Ofélia, o Príncipe da Dinamarca entabula diálogo com dois coveiros que abrem a sepultura.
O primeiro coveiro é dotado de extrema sagacidade e, talvez, seja a única personagem que realmente pode enfrentar Hamlet, intelectualmente.
O coveiro explica, ironicamente, o motivo da morte com suspeita de suicídio, apesar de ter sido recebido o corpo de Ofélia (Ophelia), em solo sagrado, algo totalmente vedado aos suicidas.
Na realidade, argumentou o que foi repetido pelo padre, depois de uma forte pressão de cima, isto é, advinda da casa real que propiciou tudo isso.
O coveiro que convive tanto com ossos e sepulturas, tão íntimo da finitude humana, possui um olhar realista sobre a brevidade da vida e vaziez absoluta das vaidades.
O coveiro é tão brilhante quanto Falstaff[1], personagem, de outra peça, a Henrique IV, Henrique V e, As alegres comadres de Windsor[2]. Afinal, esses nobres personagens conseguem sem ilusões, enxergar, o que os demais não veem.
O coveiro parece ser mais lúcido que Hamlet apesar de ser também famoso por sua consciência lúcida. Ao longo da peça, trava-se o debate teológico envolvendo questões que reaparecem no cemitério.
Lembremos que o mundo do autor inglês era policromático e a Inglaterra era oficialmente anglicana. Na era da Rainha Virgem, Elizabeth I[3], constatava-se certa tolerância com outras crenças que dialogavam com o calvinismo[4]. E, o autor era oficialmente ligado tanto à Igreja quanto ao Estado inglês, embora houvesse rumor de que fosse um católico disfarçado, por pura conveniência.
Existem muitas especulações a respeito da religião do bardo, pois algumas evidências sugerem que a família dele fosse católica e que simpatizasse com o catolicismo romano[5], mas esta tese perdeu popularidade ultimamente. A evidência mais aguda sobre o secreto catolicismo é a figura do pai do poeta, John Shakespeare. Já a mãe de Shakespeare, Mary Arden, era uma sócia da família católica em Warwickshire.
Reparem que quase todos os padres presentes como personagens são simpáticos nas peças do bardo e, com poucas exceções, tanto quanto os bispos, logo, no início da peça Henrique V, planejaram lançar o rei ao campo da batalha para que subtraia o foco do poder e a taxação sobre os bens da Igreja.
O padre presente ao enterro de Ofélia é um positivista, um legalista ortodoxo, porém, aceita e acata as pressões que vinham de superiores. Observemos o contexto, pois havia uma plateia predominantemente protestante, uma rainha anglicana e um autor simpatizante do catolicismo - uma peça que discute profundamente o poder.
Ofélia é personagem secundária, mas não passa despercebida na obra de Shakespeare. Circunscrita pelo poder patriarcal, recebe referências do pai e do irmão e, depois, do seu amor Hamlet. Não se pode dizer que Ofélia é ingênua, ao contrário, corresponde a forte expressão do amor e da lealdade. Possuidora de submissão e de um desejo contrastantes, a real fonte de seu conflito[6].
Ela é testada, a todo momento e é reprovada pela sociedade para a qual foi designada. Enquanto Hamlet finge enlouquecer como parte de seu plano obstinado por vingança, Ofélia enlouquece de verdade, por acreditar que Hamlet perdeu a razão por amor a ela.
E, por desdenhar seu amor, sugerindo-lhe que vá a um convento ou a um bordel. Em delírio histérico de Ofélia, é possível identificar as nuances do que desencadearam seu desequilíbrio e, por último, a morte que não se sabe acidente ou suicídio.
Quando Hamlet estreou, provavelmente, em 1601, o autor sabia muito pela Reforma Luterana que se iniciara em 1517, onde Hamlet estudou, em Wittenberg. Foi lá, exatamente, que Martinho Lutero tornou pública sua obra composta de noventa e cinco teses[7] que serviram de estopim ao movimento reformista na Idade Moderna.
Hamlet é homem peculiar do Renascimento, e sua visão de mundo inclui Deus, porém, sua ação é mais parecida com um diálogo com Niccoló Maquiavel[8]. O príncipe Hamlet está distante da Idade Média e seus padrões teocêntricos.
Há fascinante debate a respeito dos temas abordados na peça (poder, conspiração, absolutismo, traição e loucura) e, ainda, sobre o contexto religioso agitado da Inglaterra da época. Então, temas como o livre-arbítrio, predestinação, justificação pela graça ou por boas obras, por misericórdia divina são intensamente esmiuçados.
A divina providência e o purgatório são revelados pelo fantasma do pai de Hamlet e, outros temas ainda discutem as crenças do público e as instituições sagradas da época.
O segundo coveiro traz mais à baila uma crítica social do que propriamente intelectual. Enquanto o primeiro coveiro parece imitar o falar jurídico e, no fundo, denuncia que a lei não é igual para todos. Não existe, portanto, a isonomia. E, até faz piada. Hamlet é enviado para se curar na Inglaterra e, o coveiro afirma que não haverá problema, mesmo se não recuperar a saúde mental, porque em solo inglês, todos são loucos e ninguém notará a diferença.
Assim, loucos, palhaços e parvos poderiam dizer quase tudo no teatro, pois, eram afastados da razão e, completamente poupados por sua loucura.
Boa parte da inteligência europeia do século XVI acreditava piamente que as pessoas simples, ou seja, os sem a formação intelectual e educacional, eram capazes de serem mais verdadeiros do que muitos eruditos e letrados.
A verdade era simples e vinha sem esforços. Aliás, Montaigne em seu ensaio sobre os canibais que levou um servo de sua propriedade para conversar com os índios em Ruão. Sua condição de simples e rude o erigia à condição de verdadeiro testemunho. Afirmou o filósofo francês, há dois tipos de pessoas em que se pode confiar: homens que nos são de grande fidelidade ou, tão simples que não tenham por que fantasiar o verdadeiro.
O coveiro não era fiel à Hamlet, mas em sua simplicidade e profundo conhecimento sobre a brevidade da vida humana eram indisputáveis. Outra referência de Shakespeare, era teatral. Pois desde a Grécia, particularmente, as comédias, utilizava-se da imersão para surpreender a plateia. E, nos personagens cultos e bem letrados, o público identificava a corrupção e a decadência.
Do escravo, do rude e do malformado, extrai-se alguma virtude, muitas vezes, disfarçadas por maquinações, jaz a sagacidade e a inteligência. Para a plateia da época, à beira do rio Tâmisa, as ironias sobre a interpretação do direito canônico ou da linguagem hermética dos advogados, rendia uma oportunidade ampla para debate.
A conversa na tumba é a maneira popular de perceber como funciona “os de cima”. “Lembra-te que és pó e ao pó hás de voltar”. Misturando reflexão sobre a memória, diferenças sociais e o papel nivelador da foice da morte, tão indesejada e tão equânime.
A conversa entre os coveiros é interrompida pela chegada de Hamlet e Horatio. O príncipe indaga se o crânio ainda possuiria uma língua e, se poderia adular ou mentir, no momento. Quase desafia a caveira ao tentar.
Quando olha para os restos mortais de um advogado, destila seu desprezo pela soberba humana. E, questiona, ironicamente, onde repousariam, assim, suas artimanhas retóricas. Retoma uma parte do pensamento sobre os vermes e os reis quando Hamlet indaga ainda, sobre o destino do corpo de Polônio.
Até os ossos despertaram pouca compaixão no dinamarquês. Hamlet parece se afastar da solidariedade dos humanos vivos e mortos. A frieza cáustica e cínica de Hamlet recebe um golpe ao saber que está diante do que restou de Yorick, o Bobo da Corte[9] que brincava com ele em sua infância e lhe proporcionara infinita alegria.
O pai do príncipe lhe causava imenso respeito e admiração, mas vivia em guerra. Enfim, a companhia de um Bobo da Corte era, ao final, mais frequente e constante do que a do seu próprio pai.
Havia uma cultura relatada pelo historiador Johan Huizinga que se formara no outono da Idade Média em torno da morte. A peste negra que assolou a Europa do século XIV, o que tornou a morte cotidiana e includível. O triunfo da morte trouxe mudança de comportamento: do que adiantava tanta riqueza, nobreza e fama? Afinal, a morte igualava a todos[10].
Ressalte-se que a peste negra representou um forte vetor de transformações no Velho Continente e, após essa pandemia, se deu uma série de mudanças que começara a reverberar no âmbito social, político e econômico por todo continente.
A peste negra, teve surto que se estendeu de 1347 a 1353 e casou fortes modificações expressivas na Europa. As estimativas modernas variam entre cerca de um terço e metade da população europeia total no período de cinco anos de 1347 a 1351 morreu, durante o qual as áreas mais severamente afetadas podem ter perdido até 80 por cento da população.
A peste era chamada de negra porque causava manchas negras na pele das pessoas, fruto das infecções provocadas pelo bacilo. Essa peste também ficou conhecida como bubônica por provocar bubões ou bulbos, isto é, inchaços infecciosos no sistema linfático, sobretudo nas regiões das axilas, virilha e pescoço.
A peste negra foi uma das piores pragas que atingiu a Europa em toda sua história, pois perdurou por muito tempo e com períodos inconstantes de gravidade. A mais devastadora pandemia de peste negra aconteceu em meados do século XIV dizimando 1/3 de toda população. A peste não escolhia suas vítimas, não havia um perfil específico para os afetados, todos estavam a sua mercê, seja nobre ou servo.
Após seu surgimento muitos especialistas tentaram descobrir suas origens e possíveis formas de tratamento e prevenção. Foi possível, naquela época, entender que a peste chegou a Europa através dos navios que circulavam entre os portos e traziam muitos ratos, devido à precariedade nos cuidados com a higiene. Tentaram limpar as cidades, aromatizar, fizeram procissões, orações e de nada adiantou, cada vez mais a peste negra se espalhava pelo território europeu.
Nesta época, um dos mais famosos cirurgiões realizou várias observações dos sintomas da doença e a distinguiu em dois tipos: a bubônica e a pneumônica. Guy de Chauliac[11] viveu em Avignon (França) e chegou a ser infectado pela peste negra, mas sobreviveu e deixou várias descrições sobre suas características. Em seus relatos defendia que as pessoas não entendiam qual era a causa da peste e acabavam apresentando comportamentos violentos por acreditar que alguns povos eram os culpados, conforme explica Sardo (2012)[12].
Houve um movimento cultural muito intenso na reprodução de corpos em estado de putrefação em pinturas, no aumento da devoção de mártires como no caso de Santa Catarina e Santa Ágata[13].
A aceitação tácita do fim da vida, revolucionou a maneira de pensar e criou a cultura da “boa morte”, era preciso estar atento e se preparar adequadamente para o fim, pedir perdão pelos pecados, e acertar as contas antes que fosse tarde demais.
Na Inglaterra de Shakespeare a morte sem preparo de seu pai (que não teve tempo sequer para uma despedida) livrando-se de pecados e faltas e o desfile de caveiras que saem da terra se mostrando que um bobo da corte, um advogado e Alexandre, o Grande viraram a mesma coisa e, ecoavam pensamentos como se fosse uma dança macabra.
Embora o autor não tivesse frequentado Oxford ou Cambridge, seu latim era bom o suficiente para entender o poema de Lucrécio. De rerum natura, ou seja, sobre a natureza das coisas é poema didático e cultivado por alguns pré-socráticos gregos, escrito no século I antes de Cristo por Tito Lucrécio. Proclama a realidade humana num universo sem deuses e tenta libertá-la do seu temor à morte. Expõe tanto a física atomista de Demócrito como a filosofia moral de Epicuro.
A visão de Lucrécio é bastante austera, mas, no entanto, incita a alguns pontos importantes que permitem aos indivíduos um escape periódico de seus próprios desejos e paixões para observar com compaixão a pobre humanidade em seu conjunto, incluindo-se a si mesmo, podendo observar a ignorância, a infelicidade reinante, e incita a um melhoramento.
A responsabilidade pessoal consiste em falar sobre a verdade pessoal que se vive. De acordo com a obra, a proposição de verdade de Lucrécio é dirigida a uma audiência ignorante. Esperando que alguém o escute, o compreenda e desta forma passe a semente da verdade capaz de melhorar o mundo.
Lucrécio rompe, em definitivo, com a ideia central e metafísica de 'natureza', o que lhe confere a virtude de extraordinário avanço na história do pensamento ocidental. 'Natureza' não é uma substância, um estado primordial, ou, ainda, uma causa final de toda realidade. A natureza se confunde com os próprios átomos.
O filósofo epicurista afirmava que somos poeiras das estrelas, ou seja, que nossas almas e nossos corpos são compostos de átomos. Logo, não haveria vida após a morte e uma alma imortal, apenas um rearranjo de átomos em normas formas.
As religiões seriam, nesse contexto, fabricações perversas, pois nada poderia nos legar que não fosse dor e privação. Do que adiantaria mortificar o corpo, por exemplo, querendo uma vida eterna?
O poema filosófico desde o século XIX não havia em Portugal uma tradução. Em “De rerum natura” Lucrécio apresenta a teoria de que a luz visível seria composta de pequenas partículas. Teoria incompleta, apesar de bastante consistente, é uma espécie de visão antiga da atual teoria dos fótons.
Também, neste poema, Lucrécio sustenta a ideia da existência de criaturas vivas que, apesar de invisíveis, teriam a capacidade de causar doenças. Esta ideia representa na realidade a base da microbiologia.
Hamlet é bem mais ambíguo, mas opera a junção de Gênesis e a ideia de ser a poeira das estrelas é muito poderosa. Hamlet, percebe estarrecido que o enterro era de Ofélia.
Laertes abalado pelas mortes combinadas de seu pai e irmã (Polônio e Ofélia), prossegue triste e, até discute com o padre, que se recusa notoriamente, a dar maior pompa ao evento.
A nebulosa morte de Ofélia era embaraçosa, pois, aos suicidas era vedado o campo santo. Parece que sua loucura a levou tecer uma guirlanda de flores e que, tentando instalar-se num galho frágil de árvores, caíra na água e se afogou devido às suas roupas encharcadas.
A descrição da rainha[14] aponta que em verdade, Ofélia, não lutou pela vida, mais até do que um suicida que tira a vida intencionalmente[15].
O príncipe insiste que amou Ofélia, mais que todos e que está em luto profundo tanto quanto Laertes, seu irmão. Chegou mesmo a confessar o que negava para a namorada em vida, e disse: Eu amei Ofélia. Que diferença enorme teria causado essa confissão quando a filha de Polônio indagou a ele, o que sentia por ela, e apenas recebeu a frieza e ironia de sempre.
Hamlet rogou uma praga à moça, de que mesmo vivendo em absoluta castidade e moralidade, seria injuriada e caluniada. Como suicida, isso certamente ocorreria.
Harold Bloom diante da tardia confissão de Hamlet recomenda que desconfiemos do amor do príncipe. Todos sabiam que havia retornado à Inglaterra e, havia o plano do Rei Cláudio de ver o sobrinho morto, fracassara.
O príncipe Hamlet faz minuciosa descrição das aventuras de barco e conta a Horatio sobre como escapou da morte. Num momento de distração de um de seus ex-amigos, leu a carta que levavam contendo a sua sentença de morte.
Logo em seguida, redigiu outra carta dizendo que o leitor deveria imediatamente assassinar os homens que acompanhavam o príncipe. Então, trocou as cartas[16] e os condenou com a manobra Rosencrantz e Guildenstern à morte.
Sob o falso pretexto de dar cuidados e segurança à Hamlet, em perigo por ter cometido assassinato, Cláudio o envia à Inglaterra. Em carta dirigida ao rei, seu fiel seguidor, pede a execução sumária do enteado, alegando que seu alterado insano estado colocava em risco a vida dos dois monarcas.
Rosencrantz e Guildenstern, cortesãos amigos do príncipe, são designados para acompanhá-lo à Inglaterra. No segundo dia de viagem, o barco é invadido por piratas. Hamlet os enfrenta saltando para o navio dos inimigos que, sob promessa de pagamento, são clementes para com ele.
Novamente, ficamos surpresos com intensa frieza de Hamlet com relação à vida humana e, assim diz: “A minha consciência não me pesa: a derrota os aguarda, cresce por culpa deles. É um perigo para os fracos prostar-se entre a passagem e as pontas venenosas do inimigo”.
Hamlet consegue mostrar-se insensível à vida e terrivelmente arrogante. E, no monólogo mais célebre, Hamlet perguntava como era possível suportar “a ingratidão no amor, a lei tardia, o orgulho dos que mando, o desprezo que a paciência atura dos indignos”.
Curiosamente, Hamlet foi definitivamente ingrato com relação ao amor de Ofélia e, também foi arrogante com a morte dos colegas, para safar a sua vida. Está longe da perfeição dos heróis, pois manipula, mata e finge mostrar vaidade e desprezo na mesma proporção que revela as mais profundas virtudes e consciências épicas.
Nosso herói-vilão é, enfim, um ser humano e fogo de todos os padrões maniqueístas. Harold Bloom se irritava quando lhe perguntavam sobre “os defeitos de Shakespeare” tal como seu antijudaísmo, sua misoginia, sua submissão ao caráter orientador da monarquia inglesa e sua demofobia.
A raiva do referido crítico norte-americano se justifica como cobrar do personagem, ou de um autor, os valores que nos são caros, atualmente?
Evidentemente, Hamlet não era feminista e não conheceu os valores mais contemporâneos e, tão menos os politicamente corretos. Nada mais anacrônico, por exemplo, que julgar Aristóteles pela sua defesa da escravidão ou condenar Shakespeare por misoginia, ou mesmo Monteiro Lobato por racismo. Enfim, Hamlet nos traz a invenção do humano.
Lembremos, oportunamente, que a Inglaterra padecera de desgraças dantescas quando governada por homens e foram exatamente as rainhas que presidiram a era da prosperidade, estabilidade, conforme foi com a Rainha Elizabeth I, a Rainha Virgem. Shakespeare a admirava e, mesmo assim, manifestava sua visão masculina peculiar do mundo moderno.
O Rei Cláudio tomara providências adicionais para que ocorresse a morte de Hamlet. O plano real procurava não deixar arestas soltas, e, pensou na hipótese de o sobrinho não ser ferido. Nesse caso, pediria vinho para se refrescar e, então, haveria veneno no vinho.
Talvez, o mesmo veneno que usara quando matou o irmão e pai de Hamlet. Também, envenenaria a ponta da espada de Laertes, pois assim, mesmo que o ferimento fosse leve, ele seria fatal.
O dia do combate chegou e, toda corte se reúne para assistir, até o rei e a rainha. Hamlet pede desculpas a Laertes que o culpa pela morte do pai e de sua irmã (Ofélia). Com a retórica impecável, afirma que estava louco e que a sua loucura ofendeu Laertes e Hamlet.
Enaltece o adversário e, tudo indica que Hamlet tem o pleno domínio da razão e da emoção. Iniciado o duelo, o príncipe exige do juiz que reconheça os toques que provocou com sua espada no adversário.
E, o jogo-duelo se transforma em verídica luta. A verdade e o calor da luta em Hamlet se deparam com ódio e divergência em Laertes, assim o que era lúdico, se transforma em mortal.
Tanto Hamlet como Laertes ali estão para se vingarem da morte de seus pais. O aleatório do destino se torna soberano e a rainha bebe a taça de vinho envenenada. Gertrudes[17], cada vez mais desconfiada de Cláudio que insistia em fazer com que Hamlet bebesse o vinho.
O que confere a Gertrudes em derradeiro momento, um senso de sacrifício e de proteção maternal ao filho. Também significa que depois de estar cega pela paixão, passou a ver Cláudio com os mesmo olhos de Hamlet.
A rainha Gertrudes, ao final, apega-se o mais forte amor, o amor filial. Sobrepuja a paixão de mulher, para reencontrar o papel de mãe. Na reta final, Laertes está ferido e envenenado, a rainha e o rei estão mortos.
Hamlet sangra muito e sabe que tem pouco tempo de vida e diz muita coisa a Horatio, pedindo ao amigo que narre tudo com a maior fidelidade para que seu nome não seja manchado pela tragédia[18]. Indica a coroa à Fortimbrás que, vitorioso, retorna da campanha na Polônia. E, o príncipe Hamlet encerra sua participação, com outra famosa frase: “O resto é o silêncio”.[19]
Horatio é o único sobrevivente de toda a trama macabra. Estudos recentes trazem a possível etimologia do nome Horatio, orador da razão (orator ratio) e a ele caberia narrar tudo, um homem comum que fora testemunha de toda trama.
A prevalência do sentido filosófico e psicanalítico de Hamlet costuma eliminar a cena final. E, coloca a fala de Fortimbrás, o invasor temido que ordena quatro capitães para erguer o caixão de Hamlet, com todas as honras, em suas exéquias.
Citando, novamente, Harold Bloom, in litteris: “O mal de Elsinore é o mal de todo tempo e lugar. Todo Estado tem algo de podre e, os que têm sensibilidade semelhante à de Hamlet, cedo ou tarde, vão se rebelar”.
Enfim, a tragédia de Hamlet é a tragédia da personalidade humano. E, o único inimigo loquaz do príncipe é o próprio Hamlet. Vigora antes do silêncio, o valor singular da personalidade de Hamlet.
Pois fez erigir o homem e seus limites morais, as artimanhas retóricas de poder e de culpa, os fingimentos sociais, o amor desenfreado ou reprimido, o custo de enfrentar o mundo como a um “mar de escolhos”.
O texto de Shakespeare não se esgota nas vastidões da consciência e da tensão eterna da vida. Possivelmente, a derradeira lição é a morte, como foi para Hamlet, pois ele e todos nós só poderemos entrar no grande silêncio depois de esgotada toda experiência biográfica.
Há uma vil tentação em ver a morte como rito de passagem e de aprendizado. Todo mundo é um palco, parodiando outra peça do bardo. O que importa? Hamlet diria que o fazer até lá (a morte). Como você lida com sua noz[20] e com o nós. O resto, realmente, é um imenso, denso e profundo silêncio.
Hamlet é autor de crime, mata Polônio que se escondia atrás de uma cortina, mas comete típico erro de execução que é chamado de aberratio ictus, na medida em que acreditava se tratar do Rei Cláudio. Já a segunda conduta típica de Hamlet é prejudicada por estar presente possível causa justificante, ou seja, a legítima defesa.
Porém, para o doutrinador Rogério Greco não ocorrera a legítima defesa antecipada passível de ser justificadora do crime. O que existiria seria inexigibilidade de conduta diversa, a qual poderá excluir a culpabilidade.
A terceira conduta típica de Hamlet consistiu em matar Laertes por meio de golpe de espado desferido durante o duelo. Mas, como se trata de duelo ao qual aderiram voluntariamente tanto Hamlet como Laertes, poderíamos afirmar que agiu conforme o exercício regular de um direito, o que novamente, excluiria a ilicitude do ato do príncipe da Dinamarca.
Enfim, ainda há o debate acerca de sua inimputabilidade ou semi-imputabilidade, se considerarmos louco ou portador de transtorno mental.
Em sua loucura, Hamlet foi lúcido em enxergar a natureza humana e a explorou, ciosamente, com seu sofrimento e morte. "Preciso ser cruel para ser bom" (Ato III, Cena IV).
Referências
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BOCCACCIO, Giovanni. Decamerão. Tradução de Torrieri Guimarães. Editorial Abril Cultural, 1979.
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BRAVO, Milra Nascimento. Cemitérios (dos) Desprivilegiados no Rio de Janeiro Escravista. Disponível em: http://www.pretosnovos.com.br/dropbox/textos/academicos/1338426057_ARQUIVO_TextoANPUH-2012-MILRAversaofinal.pdf Acesso em 21.11.2021.
GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal. 5 ed. Rio de Janeiro: Impetus. 2005.
KARNAL, Leandro; DA SILVA, Valderez C. O que aprendi com Hamlet. Rio de Janeiro: Leya, 2018
QUÍRICO, Tamara. Peste Negra escatologia: os efeitos da expectativa da morte sobre a religiosidade do século XIV. Mirabilia, 2012.
SANTIAGO, Denny Mendes. Alguns comentários acerca da culpabilidade no Direito Penal: Uma análise do caso Hamlet. Disponível em: https://ambitojuridico.com.br/cadernos/direito-penal/alguns-comentarios-acerca-da-culpabilidade-no-direito-penal-uma-analise-do-caso-hamlet/ Acesso em 21.11.2021.
SARDO, Ranieri. Cronica di Pisa. Tradução de Tamara Quírico. 2012.
SHAKESPEARE, W. Hamlet. Tradução de Millôr Fernandes. Porto Alegre: L&PM Pocket, 1999.
[1] É Sir John Falstaff personagem de Shakespeare, estando presente em várias de suas peças. É conhecido por ser notório fanfarrão e boêmio. Em Henrique V, Falstaff é um dos amigos de adolescência do rei que, após a ascensão de Henrique ao trono, acaba sendo desrespeitado e abandonado pelo rei. E, assim entristecido morre abatido numa taverna juntamente com os mais antigos amigos. O homem que inspirou a personagem foi Sir John Fastolf (1380-1459) foi proprietário de terras e cavaleiro inglês da Idade Média tardia e que lutou na Guerra dos Cem anos. Ficou bem conhecido por sua capacidade de liderança em batalha, como sendo um patrono da literatura e mesmo como empresário.
[2] The Marry Wives of Windsor, ou Mulheres Patuscas de Windsor é peça de Shakespeare sendo uma comédia publicada em 1602. Há histórias de que a Rainha Isabel pediu que Shakespeare escrevesse sobre os romances de Falstaff, célebre personagem shakesperiano. Conta-se que o autor escreveu a peça em 15 dias, tanto era o desejo da Rainha. Baseia-se nos costumes da classe média provinciana da época, diferindo-se dos cenários costumeiros do escritor. Mesmo não sendo uma grande comédia de Shakespeare, As Alegres Comadres de Windsor conquista fácil o espectador pela inventividade de seus motivos cômicos e pela atualidade de seu enredo. Muito do que está na peça ainda pode ser visto em nossa sociedade e é justamente essa proximidade com as intrigas envolvendo as tais senhoras do título, seus maridos e Sir John Falstaff, que fazem a trama se aproximar do público e garantir boas risadas – ou talvez um pouco de pena do desafortunado cavalheiro balofo sacaneado pelas comadres Ford e Page.
[3] O reinado de Elizabeth I significou a centralização do governo inglês e a consolidação da igreja Anglicana na Inglaterra. Era filha de Henrique VIII e Ana Bolena, a rainha decapitada. Pouco antes de completar 3 anos de idade, a mãe foi executada por ordens do pai. Fruto de um segundo casamento, que não fora reconhecido pela Igreja Católica, ela era considerada filha ilegítima. Também tinha um irmão e uma irmã à frente na linha sucessória. Ou seja: ninguém esperava que um dia se tornasse rainha. Muito menos que ela seria uma das mais importantes monarcas a ocupar o trono da Inglaterra, com um longo reinado de 45 anos. No entanto, a situação econômica do país não era nada satisfatória. O fato de a monarca não ter tido filhos fez com que ela apontasse a Jaime, rei da Escócia, como seu sucessor. O fato de a monarca não ter tido filhos fez com que ela apontasse a Jaime, rei da Escócia, como seu sucessor. Esta decisão agradou aos protestantes, pois Jaime havia sido educado nesta fé e não representaria uma volta ao catolicismo. Elizabeth I morreu em 24 de março de 1603, provavelmente de infecção respiratória.
[4] Foi doutrina religiosa criada em Genebra, na Suíça, por João Calvino (1509-1564). É considerado o segundo movimento da Reforma Protestante, iniciada por Martinho Lutero. O calvinismo é também denominado de Tradição Reformada ou Fé Reformada. Foi também desenvolvida por diversos outros teólogos tal como Martin Bucer, Heinrich Bullinger, Pietro Martire Vermigli e Ulrico Zuínglio. Calvinistas romperam com a Igreja Católica Romana, mas diferiam dos luteranos na doutrina sobre a presença real de Cristo na Eucaristia, Princípio regulador do culto e o uso da lei de Deus para os crentes, entre outras coisas. O termo calvinismo pode ser enganoso, pois a tradição religiosa que por ele é identificada sempre foi diversificada, com uma vasta gama de influências, em vez de um único fundador. O movimento calvinista foi chamado pela primeira vez calvinismo pelos luteranos que se opunham ao calvinismo, e muitos dentro desta tradição preferem usar o termo reformado para se descrever. João Calvino repudiava o termo “calvinista”. Em suas “Leçons ou commentaires et expositions sur les révélations du prophète Jeremie”, chegou a dizer que: “Eles não poderiam nos atribuir um insulto maior do que esta palavra, Calvinismo. Não é difícil adivinhar de onde vem esse ódio mortal que eles têm contra mim”.
[5] É a vertente do cristianismo que crê que Jesus é o Salvador do mundo. Assim, os católicos pregam a salvação dos pecados, a partir da crença em Jesus, a encarnação de Deus feito homem. A divisão entre o Catolicismo romano e Catolicismo ortodoxo surgiu da disputa entre o Bispo de Roma e os patriarcas do oriente a respeito de como estava organizada a igreja. Igualmente houve uma querela teológica sobre o Espírito Santo. Este episódio, datado de 1054, é conhecido como o Cisma do Oriente.
[6] O complexo de Ofélia que se define pela necessidade que tem uma mulher, sempre em queda nas águas da indefinição da própria identidade, de ser reconhecida por um homem para ser alguém: em tempo, que morra com ela.
[7] As 95 Teses ou Disputação do Doutor Martinho Lutero sobre o Poder e Eficácia das Indulgências (em latim: Disputatio pro declaratione virtutis indulgentiarum) são uma lista de proposições para uma disputa acadêmica escrita em 1517 por Martinho Lutero, professor de teologia moral da Universidade de Wittenberg, Alemanha, as quais iniciaram a Reforma Protestante, um cisma da Igreja Católica que mudou profundamente a Europa. Tais teses discorrem sobre as posições de Lutero contra o que ele viu como práticas abusivas por pregadores que realizavam a venda de indulgências, que tinham por finalidade reduzir a punição temporal de pecados cometidos pelos próprios compradores ou por algum de seus entes queridos no purgatório. Nas Teses, Lutero afirmou que o arrependimento requerido por Cristo para que os pecados sejam perdoados envolve o arrependimento espiritual interior e não meramente uma confissão sacramental externa. Ele argumentou que as indulgências levam os cristãos a evitar o verdadeiro arrependimento e a tristeza pelo pecado, acreditando que podem renunciá-lo comprando uma indulgência. Estas também, de acordo com Lutero, desencorajam os cristãos de dar aos pobres e realizarem outros atos de misericórdia, acreditando que os certificados de indulgência eram mais valiosos espiritualmente. Apesar de Lutero ter afirmado que suas posições sobre as indulgências estavam de acordo com as do papa, as teses desafiaram uma bula pontifícia do século XIV, as quais afirmavam que o papa poderia usar o tesouro do mérito e as boas obras dos santos do passado para perdoar a punição temporal pelos pecados. As Teses são formuladas como proposições a serem discutidas em debate não representariam necessariamente as opiniões de Lutero, porém ele as esclareceu posteriormente na obra Explicações da Disputa sobre o Valor das Indulgências.
[8] Em italiano era Niccolò di Bernando dei Machiavelli (1469-1527) foi filósofo, historiador, poeta, diplomata e música, de origem florentina do Renascimento. Fundador do pensamento e da ciência política moderna, elo fato de escrito sobre o Estado e o governo como realmente são, e não como deveriam ser. Já na literatura e teatro ingleses do século XVII, foi associado diretamente ao Diabo por meio das referências caricaturais e do apelido "Old Nick". Surgiu, aí, na visão do pensamento enganoso e da trapaça, o adjetivo maquiavélico nas línguas ocidentais.
[9] O bobo da corte, bufão ou bufo era funcionário da monarquia encarregado de entreter o rei, rainha e os príncipes. De fazê-los rir. Era as únicas pessoas que podiam criticar o rei sem correr riscos. Os primeiros bobos da corte eram populares no Egito Antigo e, entretinham os faraós. Já os antigos romanos tinham a tradição de chamá-los de balastros, era remunerados por seus gracejos e, às mesas do rico, se apresentavam. Partiam da noção do trickster, por ser uma alegoria de ideias fugidias e ambíguas que, no fundo, promove o questionamento dos conceitos, formas e regras. Durante o reino de Elizabeth I, a roupa do bobo da corte era feita a partir de retalhos, para que não fosse encaixado em nenhuma classe social, permitindo-lhe, assim, livre trânsito por estas. É personagem que não é protagonista nem mero figurante. Por usar de brincadeiras, chistes, piadas e alegorias, aborda assunto das mais delicados existentes no reino. O bobo da corte por atuar por diferentes métodos, se configura com diferentes temperamentos, a saber: o ilusionista, o pateta, o vigarista e o forasteiro. E, tais temperamentos formam a complexidade do bobo, pois compartilha a qualidade escorregadia do trickster.
[10] Segundo Boccaccio, todos os dias vários corpos eram levados às igrejas mais próximas para que fossem sepultados, mas chegado certo momento já não havia terrenos suficientes. Famílias inteiras faleciam ao mesmo tempo por descaso, por não receber auxílio de seus familiares e amigos. A peste revelou o amor ao próximo e a caridade, porém pouquíssimas pessoas se dedicavam a ajudar os doentes.
[11] Foi médico e cirurgião francês. Escreveu tratado sobre cirurgia em latim, chamado de Chirurgia Magna. Posteriormente, foi traduzido para outras línguas, e utilizado como obra de referência sobre cirurgia para médicos até ao século XVII. Quando a Peste Negra apareceu em Paris, todos fugiram, especialmente, os médicos. Porém, Chauliac permaneceu tratando doentes da peste e também documentando os sintomas meticulosamente.
[12] A peste trouxe consigo uma grande ruptura na mentalidade das pessoas a respeito de sua religiosidade. Segundo Boccaccio (1979), dois grupos opostos se formaram na sociedade: os que acreditavam que a peste era advinda da cólera divina e os que entendiam ser apenas uma pandemia. Entretanto, a grande maioria pertencente aos dois grupos percebia o quão eminente estava à morte. De acordo com Quírico (2012), as pessoas buscavam desesperadamente uma forma de salvação e muitos encontraram na obsessão religiosa o caminho a seguir
[13] Catarina de Alexandria, também conhecida como A Grande Mártir Santa Catarina, foi uma notável intelectual do início do século IV. Passando mais de mil anos, Joana d'Arc disse que Santa Catarina lhe apareceu várias vezes. A Igreja Ortodoxa a venera como sendo grande mártir, e na Igreja Católica é reverenciada como sendo um dos catorze santos auxiliares. Sua festa litúrgica é dia 25 de novembro. Santa Ágata era Águeda de Catânia, Águeda de Palermo ou da Sicília, também conhecida como Ágata. Segundo seus atos era oriunda de família rica de Catânia ou Palermo e teria vivido quando sua cidade foi controlada por Quinciano. Foi martirizada durante a perseguição do Imperador Décio. Sua festa litúrgica é celebrada em 5 de fevereiro.
[14] Gertrudes não é apenas uma figura da desprezível, uma “fraqueza feminina” que Hamlet aponta nela. Ela também representa como boas maneiras e os eufemismos que uma sociedade da corte exige quando se trata de encobrir a dubiedade e a escândalo que conseguir alcançar os poderosos que dão as cartas e ditam o jogo do poder. É, portanto, a figura mais madura da impotência feminina que reveste a pobre, torturada Ofélia como manto das belas imagens lendárias. Gertrudes dá o mote e os demais o seguindo, gratos: Hamlet a chama de ninfa, Laertes a comparada à mais “Casta donzela”, e a própria rainha segundo sua morte com ricas palavras que atenuam os fatos cruéis. Sua morte é associada às transmutações corporais nas Metamorfoses de Ovídio. A alusão mítica é a jovem virgem cuja natureza é inefável é abalada, levando-a uma metamorfose de volta à sua origem no leito matricial das águas.
[15] Segundo Philippe Ariès, os cemitérios da Antiguidade se localizavam fora dos limites das cidades, porque além do medo da poluição causada pelos cadáveres em putrefação, havia também o temor de que aqueles que “se foram” pudessem retornar para perturbar os que ainda estavam vivos. Inicialmente, nestes locais eram sepultados juntos cristãos e “pagãos” e posteriormente houve uma separação quando passaram a ser enterrados em cemitérios diferentes; porém, as inumações continuavam acontecendo fora dos limites da cidade. (ARIÈS, 1989:34-35) Esta separação pode representar um possível início de hierarquização da morte.
[16] Antes de deixar o barco, porém, ele encontrara a carta em que Cláudio pede sua execução. Dessa feita, o Príncipe não hesita: troca-a por outra carta, escrita com esmero e bem lacrada, diferente da primeira apenas pela troca de nomes; no lugar do seu, escreve Rosencrantz e Guildenstern. Vendo-se livres do perigo, os infelizes dão prosseguimento à viagem para a Inglaterra, levando a carta em sua nova versão.
[17] A Rainha Gertrudes é rainha da Dinamarca e herdeira legítima do trona, é a personagem que menos falas tem na peça. Porém, sua ação movimenta toda a história. Tanto que o Canto do Bode, na voz de Gertrudes, faz ressaltar tal fato. A imagem de Gertrudes, portanto, é a da mulher transgressora, que não apenas enterra o marido, como também o troca por um homem que devia ser proibido para ela. Como esposa, não lhe cabia o desejo; mas fica claro pelas palavras de Hamlet na cena do closet - do qual colocamos um extrato uns posts atrás - que Gertrudes casou-se cedendo à uma atração pelo cunhado. A rainha se deixou seduzir, traindo assim o conceito de amor que deve cercear uma escolha de casamento. Hamlet justapõe para a mãe as imagens do pai e do tio para que ela enxergue a contradição de seus sentimentos.
[18] As últimas palavras de Hamlet nos trazem a principal reflexão que surge de toda a peça: depois que Hamlet disse tudo que deveria ser dito, o que restou foi silêncio. Quando todo esse barulho que faço para não me enfrentar, quando eu decidir acabar com toda a distração ao meu redor, quando eu parar de me anestesiar e resolver enfim olhar para dentro de si. Quando todos que conheço se forem, o que restará? Vazio. Silêncio. Sim, o resto é silêncio.
[19] Porque o príncipe Hamlet é extremamente consciente, e sozinho em sua consciência ele se indaga: “- Quando é que as pessoas vão parar de me dizer o que deve ser dito para me dizer o que as coisas realmente são?” ...
[20] Viver numa casca de noz. Depois de sua chegada, Rosencrantz logo argumentou com Hamlet que "a Dinamarca é muito limitada para a minha mente", ao que Hamlet respondeu que poderia viver recluso numa casca de noz e se considerar rei do espaço infinito.
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